domingo, 2 de janeiro de 2011

O gato branco




Um relato de Hera, por ela mesma.



 Na verdade, não deveria contar essa passagem negra da minha vida, mas encontro-me diante do sufoco dentro da minha alma que me torna insuportável olhar no brilhante reflexo do espelho e sentir que os negros corvos de Hades rodeando minha mente, por isso que vim até aqui, no pequeno monte da vila Mégara ao norte do Olimpo conversar com você, meu querido Argos, agora, apesar de morto, sinto que sua alma vaga por este local, e eu sei, não está perdido em busca do inferno, mas sim a espera do meu relato, para que assim a pobre e infeliz venha a sucumbir definitivamente desse mundo.


A pobre infeliz que digo é Sêmele, mais uma amante do meu fiel esposo, e mãe de Dionísio – nunca gostei do menino, desde cedo dado ao vinho, aos escapes terrenos e muito fúteis para mim. De qualquer forma, venho aqui narrar o dia no qual deixei o espectro obscuro apossar-se do meu corpo e fazer das minhas mãos navalhas sutis.
Era uma tarde de verão, o pôr-do-sol estava majestoso – Apolo tem aprendido como a sutileza é a melhor forma de ser nobre – e lá estava ela, desgraçada! Deitada com uma expressão congelada de pavor no rosto – o que, de fato, inspirava-me um gozo incontrolável para maquinar alguns pensamentos – apesar de tudo, não sabia bem ao certo o que faria uma vez que a mulher já havia dado à luz ao menino, e ele foi poupado em troca dela. Volto ainda à questão do céu, ele estava fabuloso, uma linha rosácea cortava dois planos azuis gradientes e uma brisa noturna calma e gelada cortava os ares.


Então foi que eu desci vagamente ao plano da infeliz, que estava horrorizada e encolhida no chão, olhei tão profundamente em seus olhos, porque um pouco tempo estariam vidrados, e esperei qualquer manifestação de clemência – que infelizmente não tive -, de modo que resolvi agir.


Se por um lado pensaria você, meu querido Argos, que a mataria tão fácil e rapidamente, está enganado. Primeiro dei um conjunto de ervas preparado com muito esmero pela minha querida Higia, o que a fez dormir por um curto período de tempo, além de paralisar seus músculos até o pescoço, e, tão rápido ela desmaiou, coloquei-a num bloco de pedra, e esperei-a acordar.


Nesse momento, os tons negros da noite já haviam dominado o céu, e a lua banhava meu rosto pela fresta da janela, e as sombras a face da infeliz que surpresa esperava deparar-se com as chamas azuis do templo de Hades, mas as únicas chamas com as quais se deparou foi a da pequena fogueira preparada no canto na saleta. Parti para o meu intento, primeiro peguei um tição ardente do fogo e passei pelos seus pés, como se não bastasse encravei-o num e depois noutro pé, deliciei-me com o brilho da dor para que assim não corra mais para os braços do meu amado.

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Fim da primeira parte e conclusão na próxima.

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